top of page

JÉSSICA

MARQUES

Frígida para quem?

Era uma vez um relacionamento abusivo numa época que não existia esse nome: Uma mulher ao entrar na biblioteca da cidade, à procura da sessão de ciências, como uma pesquisadora nata que era, e é impedida, pelo bibliotecário, e pela sociedade, a ter acesso a essa seção e à redireciona para uma coletânea de revistas tais como Sabrina, Julia, Jéssica...Já que, “obviamente”, essa leitura é a única com a qual ela, e qualquer outra mulher dos anos 50, poderia se interessar. E tal contato literário normalmente criou uma ilusão na mente de muitas dessas mulheres.


Uma espécie de gratidão eterna por migalhas jogadas ao vento, uma auto-valorização apenas quando o outro te diz ser ok, isso sem contar as inúmeras vezes que se houver uma vírgula de esquecimento, dentre tantas tarefas feitas com perfeição, a única pauta de uma briga homérica será esse “erro” elevado à décima potência. E se formos entrar na minúcia dos desejos sexuais, saibam que: eles só são permitidos ao masculino, pois ser “frígida” é a regra entre as mulheres desse século. Mas frígida pra quem? E você, leitor, pode estar se perguntando se é um exagero o uso desse adjetivo que segundo o dicionário caracteriza uma pessoa que toma postura indiferente às situações; que não sente compaixão, ou ainda uma pessoa que não se envolve? Afinal de contas ele já está em certo desuso na língua portuguesa do século XXI. Pois bem, eu poderia discorrer de forma literária sobre como durante a leitura dessas “revistas femininas” me deparei com o termo e como por muito tempo fiquei com a impressão que eu era uma dessas mulheres frias, sem qualquer libido, mas acredito que a discussão sobre esse tema se fará muito mais rica se colocada em um patamar mais aberto e filosófico da questão.


Porque se formos analisar o não-desejo feminino, este foi imposto pela nossa sociedade patriarcal, e essa literatura dita direcionada às mulheres, demonstram relacionamentos guiados pelo desejo masculino em sintonia com o feminino, mas essa sintonia é forjada...as sensações mútuas são ilusões montadas para fazer com que suas leitoras achem que um bom relacionamento acontece como é posto nas Seleções. E a incongruência entre a fantasia da revista e a realidade... as tornam responsáveis pela a sua falta de amor próprio? Pelos problemas dos seus relacionamentos reais? E quando essas realidades não são resolvidas como no ideal de tais histórias?. Nenhuma dessas suposições auxilia nessa rotina de casal que nós mulheres vivenciamos com os(as) nossos(as) parceiros(as).


E esse cotidiano se presentifica no silenciamento de cada pensamento, na imposição da vontade masculina sobre a feminina, no constrangimento vindo de cada fiu fiu escutado na rua e na criação de todo o esteriótipo de recatada e do lar, que por muito tempo foi a única possibilidade de sucesso para uma mulher. Nesta narrativa, os conflitos diários que uma mulher sofre com o não-reconhecimento do seu trabalho, e com dúvidas em relação à si própria são gigantescas. Desde a sua aparência até os seus desejos e anseios mais profundos, entram em pauta dentro desta cascata de interrogações. Mas uma questão visceral desses assuntos é a famosa “Quem sou eu?” vinculada a uma variação de “Qual é o meu desejo?”. E é sobre esses desejos que muitos adjetivam, nós mulheres, como: voluptuosas, depravadas, gostosas, cadelas, putas, “ela merecia”, recatadas, santas, do lar, mães, boas de cama, sem sal, frias, quentes… Eu poderia ficar uma tarde inteira apenas citando todas essas visões do outro sobre o que é ser mulher e como nós somos desejadas pelos outros. Mas acredito que valha mais a pena eu e você gastarmos mais tempo como as próprias mulheres que se definem. E nada melhor do que começarmos com ela, Judith Butler, que questiona o gênero em um nível bem mais amplo, pois a nossa existência corporea nem sempre nos liga à obviedade de um gênero por um padrão estético e comportamental:


“Existe uma maneira de categorizar os corpos? O que as categorias nos dizem? As categorias nos dizem mais sobre a necessidade de categorizar os corpos do que sobre os próprios corpos.”

E a partir desse questionamento acredito que o meu corpo social grita cada vez mais e me faz rever o que é ser mulher e, ainda mais, o que é ser negra em um país como o Brasil. E dentro dessa narrativa muitas vezes me vejo perdida como uma criança diante de uma biblioteca gigantesca de referências, muito mais perdida do que essa figura feminina que apresentei, e que é direcionada, pela nossa sociedade fetichista, para uma única seção vista como possível para nós mulheres: E esse “lugar da mulher” precisa ser desafiado diariamente por nós, mulheres negras, assim como a maravilhosa Bell Hooks discorreu, em várias peças da sua obra, e que pode ser exemplificada por essa frase: “Eu ficava admirada por livros poderem oferecer pontos de vista diferentes, por palavras em uma página poderem me transformar e me mudar, alterar minha mente.”, e tal pensamento libertário representa um dos desejos femininos, que são ignorados desde o princípio da humanidade, e que espero ver ele realizado em um futuro próximo, afinal de contas: Não custa nada sonhar,não é mesmo, queridxs leitorxs?!



Até a nossa próxima aventura!


Kommentare


© por Jéssica Marques

bottom of page